Comer carne é um hábito que acompanha a humanidade há milênios. Desde a caça de animais por nossos ancestrais das cavernas até os pratos elaborados por chefes de cozinha premiados, o ritual alimentar preserva um fator inalterado: para que proteínas de origem animal cheguem ao nosso prato, há que se sacrificar uma vida.
Nos últimos anos, a evolução tecnológica deu passos importantes a fim de garantir a continuidade desse costume milenar, mas com uma diferença fundamental: dispensar a criação e o abate de animais. Em outras palavras, produzir carne de forma sintética por meio do cultivo de células. A inovação ainda se restringe a clientes seletos de três restaurantes, dois nos Estados Unidos e um em Singapura. No entanto, as portas estão abertas para a exploração de um produto que desperta o interesse de empresas – em busca de novos nichos de mercado – e de pesquisadores, que enfrentam não só o aprimoramento das etapas de desenvolvimento dessa alternativa proteica, como também se deparam com questões que fazem dessa uma realidade distante da alimentação diária da humanidade.
Recentemente, pesquisadores da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp participaram de um estudo inédito que avaliou aspectos relativos à segurança da carne cultivada em laboratório. A pesquisa, coordenada por Anderson S. Sant’Ana, docente e atual diretor da FEA, e pelo The Good Food Institute Brasil (GFI Brasil), organização sem fins lucrativos que apoia estudos sobre proteínas alternativas, contou com uma equipe multidisciplinar da qual participaram Maristela Nascimento, professora da FEA, e Kamila Habowski, doutoranda em Ciência de Alimentos pela faculdade, além de pesquisadores de outras instituições. O trabalho deve resultar em uma Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), importante para lançar no país as bases da nova tecnologia. O documento será divulgado em breve pelo GFI Brasil junto com ou- tros materiais voltados ao público geral.
Futuro cultivado
A ideia de criar proteínas animais de forma sintética, sem a necessidade de abate, consta das previsões científicas para o futuro há bastante tempo. Ainda em 1931, o então parlamentar Winston Churchill, que mais tarde se tornaria primeiro-ministro britânico, em um ensaio intitulado “Fifty Years Hence” (“Daqui a 50 anos”, em tradução livre), projetou que seria absurdo, no futuro, um frango inteiro ser criado para que se comesse apenas partes da ave – segundo o político, haveria a possibilidade de produzi-las separadamente, em laboratório. O exercício de futurologia de Churchill tornou-se realidade apenas em 2013, quando Mark Post, farmacologista da Universidade de Maastricht, nos Países Baixos, apresentou o primeiro hambúrguer feito a partir de carne cultivada. Na época, estimou-se que a produção de uma unidade valeria US$ 330 mil. Desde então, a carne cul- tivada entrou no radar de empresas do setor focadas em abocanhar esse nicho.
Atualmente, duas empresas norte-americanas comercializam, em pequena escala, produtos baseados em carne cultivada de frango, a Good Meat e a Upside Food. A liberação para o comércio dos produtos da Upside Food ocorreu primeiro em Singapura, um país asiático, em dezembro de 2020. Em novembro de 2022, foi a vez de os Estados Unidos autorizarem o procedimento e, em março de 2023, o país liberou os produtos da Good Meat. No Brasil, cinco empresas já desenvolvem tecnologias similares: as gigantes JBS e BRF, que trabalham em parceria com empresas e pesquisadores da Espanha e de Israel, respectivamente, além de três empresas menores, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
Por se tratar de uma novidade mesmo para pesquisadores da área, o estudo realizado pela Unicamp e pelo GFI Brasil tem a finalidade de avaliar os riscos potenciais de cada etapa do processo, desde a coleta de células do animal doador até o processamento final do produto. O trabalho também projeta como seria o processo completo de fabricação de um hambúrguer de carne cultivada. “A ideia é que o documento seja um guia sobre como produzir carne cultivada com segurança, estabelecendo boas práticas para a fabricação e que possa ser usado como base por agências regulatórias”, explica Sant’Ana.
Em geral, estudos como esse ocorrem depois do desenvolvimento final de um produto. Porém, no caso da carne cultivada, houve a necessidade de inverter a ordem usual dos processos. “Por ser um produto novo, vamos estudá-lo com base em nosso conhecimento prévio, verificando quais aspectos de segurança podem ser considerados para já lançarmos bases para as demandas regulatórias em sua implementação”, destaca o docente.
O estudo também contribui para a evolução científica do setor ao identificar pontos que ainda exigem aprofundamento. “Hoje nós temos uma quantidade muito restrita de informações sobre esse processo. Trata-se de algo totalmente novo”, pontua Nascimento. Segundo a professora, grande parte dos avanços tecnológicos referentes à carne cultivada vem ocorrendo dentro de empresas, com processos e inovações protegidos por patentes. Assim, é necessário que mais pesquisadores se engajem no tema. “Não podemos fechar as portas da academia. Precisamos abri-las.”
Para Amanda Leitolis, especialista em ciência e tecnologia do GFI Brasil, a interdisciplinaridade do grupo e a experiência acumulada na produção de carnes contribuíram para a obtenção dos resultados atuais. “Juntando o conhecimento de cada um, conseguimos formular como poderia ocorrer o processo de produção de carne cultivada em escala piloto”, destaca.
Receita complicada
A técnica de produção da carne cultivada é uma das alternativas existentes na ciência para a obtenção de proteínas alternativas às convencionais (resultantes do abate de animais), ao lado dos processos de fermentação e das proteínas vegetais conhecidas como análogas, desenvolvidas a partir de plantas, com características de cor, sabor, textura e aparência similares às dos produtos de origem animal. “Com a carne cultivada, é possível oferecer um produto capaz de mimetizar a estrutura e as características sensoriais da convencional”, explica Rosana Goldbeck, professora da FEA que trabalha com o desenvolvimento de novos insumos para o cultivo de células animais.
O processo é complexo e exige equipamentos de alta tecnologia e cuidados rigorosos para evitar contaminações. A “receita” da carne cultivada conta com quatro etapas principais: a coleta das células animais a serem cultivadas; o isolamento e seu cultivo em biorreatores, etapa crucial que concentra os maiores desafios; a diferenciação celular e a estruturação dos tecidos; e a configuração final do produto na forma em que chegará ao consumidor – um hambúrguer, uma salsicha, um filé.
Por meio de biópsia, as células coletadas passam por um cultivo inicial de crescimento e são preparadas para o ambiente do biorreator. Além de não prejudicar o animal doador, a extração das células garante que possam ser armazenadas, antes de sua utilização, por períodos mais longos de tempo. “A partir da manutenção dessas células, dispensamos a necessidade de novas biópsias”, ressalta Bárbara Flaibam, doutoranda da FEA que pesquisa o tema. Após o cultivo inicial, as células seguem para biorreatores, equipamentos dentro dos quais variáveis como temperatura, pH, pressão e outras podem ser controladas a fim de que haja um ambiente adequado para as reações e transformações bioquímicas desejadas – no caso, o crescimento de células animais.
A fim de que isso ocorra, as células devem ser cultivadas em um meio de cultura estéril, que promova seu crescimento e multiplicação, composto por água, glicose, sais minerais, vitaminas, aminoácidos e indutores de crescimento. Por vários motivos, esse é o maior gargalo atual do processo. Uma das razões é o custo: grande parte dos insumos de formulação dos meios de cultura foram criados pela indústria farmacêutica, que trabalha com preços e escalas incompatíveis com a produção de alimentos.
Uma das barreiras está em sua própria composição, pois se trata de uma formulação que varia de acordo com o tipo de célula a cultivar. Outro obstáculo reside no fato de parte da tecnologia de cultivo celular utilizar um ingrediente que, além de caro, esbarra em questões éticas: o soro fetal bovino, extraído de fetos de animais e rico em proteínas, aminoácidos, ácidos graxos e hormônios.
“Segundo dados da literatura, em média, de 55% a 95% do custo do processo de carne cultivada refere-se ao meio de cultivo e 95% desse total refere-se ao soro fetal bovino”, explica Goldbeck. Apesar de ser um meio de cultura eficaz, seu uso para a produção em larga escala mostra-se inviável tanto por ser dispendiosa como pela incoerência em utilizar um insumo de origem animal em um produto criado como alternativa ao abate.
Assim, hoje, o uso do soro limita-se a etapas do cultivo inicial e pesquisas buscam desenvolver insumos para o meio de cultura extraídos de fontes vegetais. É o caso do trabalho de Flaibam, que aproveitou dois resíduos agroindustriais – farelos de soja e amendoim – para a extração de albumina, uma das principais proteínas usa- das no cultivo celular. Não obstante, novas etapas são necessárias para descobrir outras fontes para cada componente do meio de cultura. “Proteínas e aminoácidos são seus principais constituintes. Isso é o que mais encarece o processo. Mas, ainda assim, o meio de cultura não estaria pronto. Ele precisaria ser reconstituído com vitaminas, hormônios de crescimento e outros componentes”, descreve a pesquisadora.
Ainda nos biorreatores, as células devem passar por uma etapa de diferenciação, na qual vão se modificar em tecidos a compor a nova carne. Isso acontece com o auxílio de scaffolds (andaimes, em inglês), estruturas formadas por materiais comestíveis e biodegradáveis, aos quais as células podem aderir e em que podem se diferenciar. Com os tecidos formados, o processo segue para a configuração do produto na forma desejada. Atualmente, formatos pré-fabricados, como almôndegas, nuggets, hambúrgueres e salsichas, são mais simples. “Quanto mais nobre for o formato, como um filé ou um bife, mais complexa é essa etapa”, pontua Goldbeck.
Eficiência e segurança
Da mesma forma que a produção de carne cultivada envolve processos e conhecimentos diversos, os desafios para torná-la uma opção viável e segura também são grandes e estão dentro do que Leitolis define como o binômio custo-escala, ou seja, todo o processo deve ter um custo compatível com a produção alimentícia em grande escala, capaz de atender um público amplo. Hoje, a balança está longe do equilíbrio.
Há ainda desafios de ordem sanitária, ponto avaliado pelo estudo de segurança do GFI Brasil que contou com a participação da Unicamp. “Identificamos vários componentes dos meios de cultura que não são aprovados para consumo humano. Essa é uma primeira ponta, o desenvolvimento de reagentes que sejam seguros para o consumo humano, ou comprovar que esses componentes usados no início do processo não chegam ao produto final”, aponta Nascimento, mencionando outros insumos adicionados ao meio de cultivo que demandam atenção, como hormônios para crescimento e antibióticos. A docente lembra que, mesmo com todo o processo de fabricação superado, outros gargalos surgirão. “Não conhecemos ainda o comportamento desse produto no mercado, não sabemos qual sua vida de prateleira.”
O consenso é de que esse conhecimento demanda que as pesquisas na área avancem. Goldbeck e Flaibam apontam que já se reconhecem vantagens de algumas das etapas do cultivo de carne em comparação à produção convencional de proteínas animais. Para as pesquisadoras, há maior poder de controle em biorreatores do que no caso do organismo de um animal. “No cultivo de células, pode ser necessária a aplicação de antibióticos. Mas vários compostos bioativos com propriedades antimicrobianas podem cumprir funções positivas, evitando o uso de antibióticos”, defende Flaibam.
A ciência brasileira também pode conquistar mais espaço internacional com o desenvolvimento nessa área justamente pela tradição do Brasil na produção de carne. Leitolis conta que países como Israel e Singapura, que empreendem esforços no setor, manifestam grande interesse pela experiência brasileira voltada à produção convencional de proteínas. “Há uma expectativa de que o Brasil seja líder nessa área”, comenta.
Fonte: Unicamp